segunda-feira, 14 de maio de 2018

14 de Maio (Por Ernesto Xavier)

Eu sempre me pego pensando naquele 14 de maio. Faço um projeção do que deve ter se passado na vida de milhões de negros que foram escravizados por toda a vida e que agora estavam "livres". Sim, tão perigoso quanto o sequestro, encarceramento e trabalho forçado, foi a libertação nos moldes que encontramos no Brasil.

Calma. Não se precipite. Não estou dizendo que deveríamos permanecer escravizados. Claro que não.

Mas já pararam para pensar em como isso se deu?

O sistema já estava falido. A lei Áurea não foi uma novidade.

Ela era a consolidação da derrota escravocrata. Já tínhamos negros libertos. Os que sobreviviam, claro. A média de vida de um negro na lavoura era de 7 anos. Muitos começavam ainda crianças. Morriam cedo. As condições eram degradantes. A sociedade compactuava com tudo. A Igreja também. As leis, ou seja, o judiciário, também. O governo também. As "pessoas de bem" também.

Matar um negro não te levava para o inferno. Negro não era "gente". Não tínhamos alma.

Já pensou o que é ser sequestrado em sua terra, levado para um local totalmente desconhecido, com uma língua diferente, em porões fétidos e insalubres, acorrentados? Trabalhar no sol quente, alimentar-se mal, ser tirado de sua família, perder tudo que tinha? Criar uma relação com aqueles que estavam ao seu lado era uma necessidade. Como fazer isso quando aqueles eram de grupos rivais na terra de origem? Com uma língua diferente? Com deuses diferentes?

Como humanizar-se quando se vê seus filhos serem tirados de perto de si, quando sua mulher é estuprada, quando se é açoitado?

Então chega um lei e diz que aquilo tudo acabou. Alívio.

Mas onde viver? Como sobreviver? Voltar para a terra de onde veio? Como? E quando já se nasceu naquela terra que ainda lhe parece estranha?

Como recomeçar?

Analfabeto. Sem casa. Sem trabalho. Desumanizado.

Ou alguém acha que do dia para a noite a sociedade passou a ver o negro como humano? Passou a achá-los legais? Passou a ama-los?

Então chegaram uns pobres da Europa. Brancos. Que recebiam lugar pra morar, um pedaço de terra muitas vezes, um trabalho, não eram forçados a trabalhar ou açoitados, tinham a cor de pele admirada, eram considerados mais produtivos e inteligentes, estavam com a família. Enquanto aqueles negros nada disso recebiam.

"Vamos dar moleza para esses negrinhos? Jamais."

E isso foi de geração em geração.

As periferias, cortiços e morros ocupados pelos negros libertos. Grupos e mais grupos saíam dos interiores para as capitais em busca de trabalho e moradia. Ali nasciam os morados de rua, os desvalidos, os marginalizados.

Ah, aquele 14 de maio. Uma liberdade aprisionante. Presos a uma terra que não era deles. Jogados propositalmente ao léu para que morressem. Sim, está documentado: pensavam que em 100 anos não existiriam mais negros no Brasil.

130 anos depois cá estamos. Vivos e ainda firmes na tentativa de reparar os estragos que nos fizeram nos últimos 500 anos. Resistir é preciso.

Dizem que é vitimismo, que vemos racismo em tudo, que podemos chegar a qualquer lugar apenas por nosso esforço. Mas quando vejo as filas de desemprego, os presídios, os manicômios, o IML, as favelas, eu vejo um mar negro. Vejo o 14 de maio se repetindo dia após dia, como se parados estivéssemos em uma data sem que pudéssemos sair dela.

Quero chegar aos dias seguintes. Quero ultrapassar a fronteira do engenho de cana-de-açúcar e caminhar com meus irmãos por uma terra em que possamos chamar de nossa.

Ainda somos estrangeiros em um país que não nos quer.

Ernesto Xavier é ator, jornalista e escritor. Autor do livro "Senti na pele".



A luta esquecida dos negros pelo fim da escravidão




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