quarta-feira, 26 de julho de 2017

Amigo Branco (Por Ernesto Xavier)

Olá, amigo branco. Tudo bem? 

Hoje estou falando contigo. É um papo necessário. Há tempos nós caminhamos juntos, conversamos, você lê o que eu escrevo e até concorda comigo em vários pontos. 

Não precisamos concordar em tudo, eu sei. Mas tem uns assuntos que a gente não falou ainda, assim, na cara, na sinceridade, de forma crua, sabe? Acho que chegou a hora.

Nada no Brasil é uma coincidência. Tudo é fruto de uma história escrita por mim, por você e por todo mundo que pisou aqui um dia.

Eram 23h43 de uma terça-feira. Eu estava no BRT lotado, sem espaço para mais ninguém, que iria em direção à Santa Cruz. Não era coincidência que cerca de 80% das pessoas que estavam ali, àquela hora, voltando para suas casas, eram negras. Muitas delas nem sabem que são negras, eu creio. Suas almas sabem. Seus genes sabem. Seus ancestrais sabem.

Não é coincidência que mais de 70% da população carcerária seja negra. Não é coincidência que 78% dos homicídios sejam de negros. Não é coincidência que dos 513 deputados federais, quase nenhum deles seja negro. Não é coincidência que as favelas sejam predominantemente negras. Não é coincidência que apenas 12,8% dos universitários sejam negros, mesmo com as cotas.

Somos seres históricos, resultado de tudo que veio antes de nós. 

Estou falando de estrutura. Racismo Estrutural. 

O racismo não é só quando você vê alguém chamando o outro de macaco. Isso na verdade é Injúria Racial. O racismo vai muito além do xingamento. Ele está presente em praticamente tudo que vemos no Brasil. Infelizmente não te explicaram isso na escola e nem vão explicar. Em casa? Você também não ouvirá isso em casa, amigo branco. Nem na TV. Nem na Veja. Talvez na internet, já que agora temos este espaço para falar. Mas você lê? Ou acha que estamos chatos e só sabemos falar disso? A gente tem que ser “chato” e repetitivo, porque não nos deixaram falar por 400 anos. 

É um tempinho, né?

Quando a polícia entra na favela atirando e acertando tanto o bandido, quanto o morador, isso é reflexo do racismo estrutural. Quando esse bandido predominantemente é negro, isso é o racismo estrutural. Quando o policial mal remunerado e mal treinado, em grande parte negro, arrisca a vida, isso também é o racismo estrutural. Quando aquele aluno da escola pública “sabe” que seu futuro vai ser bem complicado e que ele dificilmente conseguirá algo melhor do que seus pais, isso também é o racismo estrutural. Quando o dinheiro investido pelo governo em infraestrutura faz do Leblon um bairro limpo, com saneamento, asfalto liso, mais segurança, transporte e saúde, enquanto Sepetiba tem transporte precário, ruas sem asfalto, buracos, esgoto a céu aberto, quase nenhuma estrutura, isso, sim, é o racismo estrutural.

Aí você vai dizer que na verdade é uma questão social. Tolinho.

Quem é pobre no Brasil? É o filho da desembargadora que foi solto depois de mais de 120 kg de maconha ou o Rafael Braga, preto, com uma garrafa de Pinho Sol? Quem vai conseguir habeas corpus pra cuidar dos filhos, a Adriana Ancelmo ou a Ana Lys, negra e periférica?

O acesso à justiça é diferente. O acesso à saúde, à educação, ao emprego, ao amor. Até o amor é influenciado pelo racismo. Pergunte à uma mulher negra e ela vai te explicar.

Ser pobre e preto não é uma coincidência. Ser branco e pobre é uma exceção. 

Quando a TV tem pouquíssimos artistas negros em comparação aos brancos, isso é o racismo estrutural gritando e te dizendo que não quer mudar, que o mundo ideal deles não é aquele que te inclui se você é preto. Isso vai entrando na cabeça daquela criança negra, que desde pequena não se vê em lugar algum. Ela quer ser princesa, mas nunca apresentaram a ela as princesas africanas, as histórias africanas. Ele/ela quer ser cientista, mas nunca mostraram a ele/ela algum cientista parecido com ele/ela. Ele não conhece Neil DeGrasse, nem sabe que Machado de Assis e Lima Barreto eram pretos, nem ouviu falar em Carolina de Jesus. Malcolm X? Luther King Jr? Angela Davis? Nem dão aula de inglês direito na escola dele. Cursinho? Hahahaha Piada. Isso é racismo estrutural, amigo branco. 

Quando você vai naquela festinha pleiba com ingresso à 80 reais, você só vai ver o preto servindo ou na banda daquele rap ou funk que você gosta de ouvir, mas que você só ouve se for na tua esquina, porque se for pra entrar na quebrada onde essa música surge, você não vai. Não vai porque você curte um “ambiente diferenciado”. Você não sobe a favela pra comprar maconha e pó. Você tem um intermediário que te livra disso. Mas teu dinheiro financia a guerra. A guerra que você vê na TV e se diz horrorizado. Tu é patrocinador da guerra, cara. A guerra que mata os pretos. A guerra que ainda tenta eliminar os pretos do Brasil, assim como queriam há 100 anos atrás. 

Você tá me lendo até aqui? Tá mesmo? 

Já conseguiu imaginar um presidente negro no Brasil ou isso é só coisa que americano pode ter?

Esse país não é miscigenado porque todo mundo se ama e gosta de procriar com gente de outra cor, de outra classe, de outra origem. Nós somos filhos do estupro. Desculpa te contar isso agora, mas é o que posso te dizer. Não é uma suposição. É uma questão de análise de documentos e relatos antigos, além de exames de DNA feitos recentemente. A mulher negra não seduzia o português para conseguir regalias. Ela era estuprada, mesmo tendo companheiros negros. Homens negros fortes eram tidos como reprodutores, assim como fazem com bois e cavalos. 

Negros aos montes foram jogados nas periferias, sem emprego, sem casa, sem estudo. Jogados nas ruas. Não é à toa que temos tantos moradores de rua...negros. Quando surge um branco, ele vira o “mendigato” e é abrigado por alguém que se compadece de alguém tão bonito que está nas ruas. O preto não vira mendigato. O preto vai forçado para abrigo, o preto é preso, o preto toma jato de água, o preto é cracudo, o preto é amarrado no poste. 

Amigo branco, você historicamente é racista. Desculpa te informar isso mais uma vez. Eu sei que você talvez nunca tenha xingado alguém de macaco, você tem vários amigos negros, você já namorou ou ficou com alguém negro, você curte as paradas negras e apoia de toda forma possível. Obrigado. Siga melhorando, beleza? Mas...ainda precisa entender o que você representa e reproduz. Não tem como eu passar a mão na sua cabeça. Não estou brigando. É uma conversa, séria, sim, mas sincera. O racismo por ser estrutural, permeia tudo, está enraizado, entranhado. O mito da democracia racial nos persegue e impede avanços. 

Cuidado com o “mas” das suas respostas. Normalmente ele é um silenciador. Ele te coloca em posição de poder, pois esta posição sempre foi sua, não é mesmo? O “mas” assassino, que diz ser tolerante, porém olha com antipatia para o fim dos próprios privilégios. 

Privilégio não é mérito, amigo branco. Privilégio é privilégio. 

Um dia eu volto pra falar mais. Por hoje é isso. Não deixe a estrutura te engessar. 

Sua estrutura pode matar alguém.

Um abraço,

Amigo preto



Ernesto Xavier é ator, jornalista e escritor. Autor do livro "Senti na pele".





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