quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Foro Privilegiado: um dos grandes males do país (Por Thiago Muniz)

Foro privilegiado é um direito adquirido por algumas autoridades públicas, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, garantindo que possam ter um julgamento especial e particular quando são alvos de processos penais.

Formalmente chamado de “Foro por prerrogativa de função”, o foro privilegiado é atribuído aos indivíduos que ocupam cargos de alta responsabilidade pública, como: Presidente da República, Vice-Presidente, o Procurador-Geral da República, os ministros e os membros do Congresso Nacional.

Conforme consta na Constituição Brasileira de 1988, a investigação e o julgamento das infrações penais das autoridades com foro privilegiado passa a ser competência do Supremo Tribunal Federal – STF. Normalmente, entre os indivíduos sem foro privilegiado, as ações penais costumam tramitar nos Juízos de primeira instância.

Existem críticas a respeito da eficiência do foro privilegiado no Brasil, pois seria um “privilégio” que afronta diretamente o artigo 5º da Constituição Federal.

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

No entanto, ao contrário do que muitas pessoas pensam, o intuito do foro privilegiado é proteger a atividade do cargo público (a chamada “coisa pública”) ocupado pela pessoa sob acusação penal, e não a pessoa em si.

O fim do foro privilegiado é garantido quando a pessoa sob determinada acusação penal deixa de assumir o cargo público que lhe garantia este privilégio. Neste caso, o seu julgamento não compete mais ao STF.

Estima-se que existem aproximadamente 22 mil pessoas com foro privilegiado no Brasil, um número considerado exagerado para os padrões mundiais, segundo alguns especialistas jurídicos.

É JUSTO EXISTIR O FORO PRIVILEGIADO?

O Brasil é um país que adota de forma ampla o foro privilegiado às suas autoridades, estendendo esta regra a milhares de agentes políticos. As ações penais originárias, propostas em Tribunais contra aqueles que detêm o privilégio de foro, são de uma ineficiência absoluta, e as estatísticas (regra geral, inexistentes) podem provar que as decisões de mérito não chegam a 5% dos casos. Estender o foro privilegiado a aposentados ou parlamentares não reeleitos é aumentar a falta de efetividade, sem qualquer justificativa teórica ou prática. Estender o foro privilegiado às ações por improbidade administrativa é passar a elas a falta de efetividade que caracteriza as ações penais. Reduzir a prerrogativa de foro aos crimes de responsabilidade, excluindo os crimes comuns e manter a competência da Justiça de primeira instância para os demais casos (aposentados, não reeleitos e acusados de improbidade administrativa) é dar um passo à frente para que o Poder Judiciário cumpra o seu papel de distribuir Justiça em tempo razoável.

Nunca se deu ─ e nem se dá ─ maior atenção às ações penais originárias no Brasil. O mundo acadêmico não se preocupa com os temas de política judiciária e administração da Justiça. Raríssimas são as dissertações de mestrado ou teses de doutorado. Todavia, agora a questão do foro privilegiado está na ordem do dia, tendo, inclusive, sido objeto de manifestação contrária da Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE, no dia 1º de junho passado. E não é sem razão, pois este é um dos maiores problemas da impunidade na esfera criminal.

No passado, o número de autoridades que gozavam do direito ao foro privilegiado era pequeno. Apenas para dar-se um exemplo, no início da década de setenta havia 33 Desembargadores no Tribunal de Justiça de São Paulo, enquanto hoje são 360. Calcula-se que, ao todo, o número de magistrados de segunda instância, incluindo todas as Justiças, aproxime-se de 1.300. Por outro lado, até 1988 os Prefeitos respondiam ações penais na primeira instância e, depois da Constituição, no Tribunal de Justiça. No âmbito do Ministério Público, para falar apenas do Federal, o número que era irrisório nos anos oitenta, atingiu agora centenas. Pois bem, todas estas autoridades e mais outras tantas (só juízes são cerca de 13.000) têm foro privilegiado. Não é, pois, de surpreender, que nos Tribunais existam denúncias desde fatos graves, como homicídio ou corrupção passiva, até as mais banais práticas contravencionais.

Entretanto, apesar da mudança e do acréscimo de ações penais originárias nos Tribunais, a estrutura destes continua a mesma, preparada apenas para receber recursos. O único Tribunal brasileiro que se adaptou ao novo modelo foi o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que criou uma Câmara especializada no julgamento de Prefeitos (4ª. Câmara Criminal). Os demais continuaram como antes, sem providência alguma, com funcionários que não tinham e ainda não têm a prática de processar uma ação penal, sem salas próprias para audiências e com dificuldades para as medidas mais corriqueiras, como o recolhimento de fiança.

Da mesma forma, Ministros e Desembargadores não estão habituados a interrogar réus, ouvir testemunhas e conduzir a prova. A complementar a ineficiência, a maioria das provas são produzidas por cartas de ordem, em locais distantes do julgamento. A própria investigação do crime é feita com maior dificuldade. No caso dos Juízes, por força da LC 35/79, art. 33, par. único, aquilo que deveria ser apenas uma apuração preliminar, tal qual um inquérito policial, torna-se um procedimento com contraditório, ora mais, ora menos, conforme entender o Relator.

Quando a autoridade investigada é um parlamentar ou um chefe do Poder Executivo, simplesmente não há previsão para a condução das investigações, como e quem deve fazê-las. Os Regimentos Internos dos Tribunais não costumam disciplinar o assunto. Mas, depois de concluída a apuração, a denúncia só pode ser recebida por órgão colegiado (Lei 8.038/90, art. 6º), o que motiva pedidos de vista que podem retardar o ato em meses ou anos. E uma vez instaurada a ação penal, entra-se em um emaranhado burocrático de delegação de colheita de provas, já que um Ministro ou Desembargador não costuma viajar e ouvir testemunhas em ouras cidades e, se o fizer, seus processos no Tribunal ficarão parados.

Mais poderia ser dito. Inclusive, da desdita por que passam os acusados inocentes, já que as ações penais não terminam. Mas um só fato é suficiente para dispensar maiores considerações. No Supremo Tribunal Federal, há muitos anos ninguém é condenado em ações penais originárias. Talvez o último réu condenado tenha sido o Deputado Francisco Pinto, da Bahia, que na década de setenta protestou contra a visita do General Augusto Pinochet ao Brasil. Preso por crime contra a segurança nacional, acabou condenado por crime contra a honra.

O mesmo sucede, regra geral, nos demais Tribunais, exceto em casos de maior simplicidade na apuração da prova. É necessário, contudo, registrar que esta ineficiência não pode ser atribuída aos Ministros ou Desembargadores, sabidamente envolvidos com milhares de processos a exigir-lhes dedicação absoluta. A falha é do sistema. Mas, por ser grave e por estar hoje mais do que nunca visível, precisa ser ressaltada.

Um país que pretende colocar-se entre as principais nações do planeta não pode arrastar a pecha da corrupção ou da ineficiência no seu combate (com grande colaboração das ações penais originárias). No ano de 2002, o Brasil colocou-se em 45º lugar no indicador anual de corrupção da “Transparência Internacional” (Gazeta Mercantil, 29.8.2002, A-12). Em 2006, todavia, na lista de 206 países pesquisados pelo Banco Mundial, caiu de posição assumindo o 106º lugar (O Estado de São Paulo, 16.9.2006, B8). Diante de tal quadro, merecem reflexão as seguintes medidas:

1) Restringir a competência por prerrogativa de função aos crimes de responsabilidade. Com efeito, ainda que seja compreensível levar um Juiz Federal a julgamento perante o Tribunal Regional Federal, pela prática de um crime de responsabilidade (p. ex., prevaricação), é absolutamente sem sentido que se proceda da mesma forma no caso de crime comum, como um acidente de trânsito que resulte em lesões corporais culposas. Restringindo a competência dos Tribunais aos crimes de responsabilidade, estar-se-ia dando maior importância aos Juízes de primeira instância e desobstruindo-se a pauta dos Tribunais, que ficariam com mais tempo para os casos de maior gravidade. Esta alteração dependeria de Emenda à Constituição.

2) Afastar-se a possibilidade de foro privilegiado para os agentes políticos aposentados ou sem mandato. Se a ação penal originária dos Tribunais já é exceção, a inclusão de aposentados nesta categoria é, ainda, mais excepcional. Inexistente em toda parte, dela só se tem notícia na Constituição da Colômbia, art. 174. Evidentemente, nada justifica este tratamento especial pois, se o foro privilegiado é uma forma de evitar acusações sem fundamento, por motivos pessoais (p. ex., ódio, inveja, divergências políticas), uma vez fora do cargo o agente político, nada justifica que se perpetue esta deferência. Imagine-se um Juiz de um Tribunal Regional do Trabalho que, por discussões envolvendo questões de vizinhança, sofra uma representação por crime de ameaça (Cód. Penal, art. 147) A adotar-se o foro privilegiado, responderá perante o Superior Tribunal de Justiça, em Brasília.

3) Evitar o foro privilegiado para as ações de improbidade administrativa (Lei 8.429/92). Inexiste previsão constitucional para que se reconheça tal benefício às autoridades que gozam, na área criminal, de foro privilegiado. Mas os que são favoráveis a tal posição, argumentam que as autoridades não podem se ver expostas a ações precipitadas, por vezes propostas com finalidade política ou por sentimentos pessoais menos nobres. Realmente, este é um risco. Tal procedimento pode ocorrer e, regra geral, sem controle por parte das Corregedorias do Ministério Público. Em outras palavras, qualquer autoridade dos Poderes da República e do próprio Ministério Público podem ver-se envolvidas em uma ação civil pública que tramitará por 10 ou mais anos e que não pode ser trancada por uma instância superior. Mas, se esta é uma situação de risco, maior ainda será o estabelecimento de foro privilegiado para as ações de improbidade administrativa, posto que, em tal hipótese, elas não terão a menor previsibilidade de desfecho. Exatamente como as ações criminais originárias. O correto, então, será o próprio Ministério Público promover cursos de capacitação aos seus agentes, mostrando as conseqüências de uma ação proposta de forma impensada, bem como apurar faltas funcionais quando se evidencie abuso ou desvio de poder (o Conselho Nacional do Ministério Público tem um papel importante nesta busca de equilíbrio). Por outro lado, os Juízes de primeira instância precisam conscientizar-se da importância desses pedidos e evitar que se instaurem ações precipitadas, inclusive, se for o caso, indeferindo a inicial ou excluindo a parte no despacho saneador. Ainda, o art. 17, § 5º da Lei 8.429/92, que declara preventa a jurisdição para todas as outras ações eventualmente propostas, deve ser observado com rigor, a fim de evitar que o réu tenha que se defender em diferentes (e eventualmente distantes) comarcas. No entanto, o que não se justifica é acabar com este instrumento poderoso de controle dos atos administrativos, por um ou outro excesso que tenham ou venham a ser cometidos.

Não obstante suas profundas raízes históricas no constitucionalismo brasileiro, o foro especial por prerrogativa de função sofre críticas na doutrina e mesmo da parte de membros do Poder Judiciário. Um de seus mais veementes opositores tem sido o Ministro Luiz Roberto Barroso, que recentemente declarou à imprensa: “foro por prerrogativa de função é um desastre para o país, minha posição é extremamente contra. É um péssimo modelo brasileiro e estimula fraude de jurisdição, na qual, quando nós julgamos, o sujeito renuncia, ou quando o processo avança, ele se candidata e muda a jurisdição. O sistema é feito para não funcionar”.

O juiz federal Sérgio Moro, antes de comandar a Operação Lava Jato, expressou a posição de parcela do Poder Judiciário contrária ao foro privilegiado. Segundo Moro, “na avaliação da magistratura federal, o foro privilegiado é instrumento de impunidade. É um resquício aristocrático e acaba tornando o sistema penal ineficiente. (...) Os juízes federais, por meio da Ajufe, são absolutamente contra qualquer tentativa de ampliação do foro privilegiado. Se houvesse algum movimento no sentido de modificar o foro privilegiado, deveria ser no sentido ou de eliminá-lo ou de extingui-lo, mas jamais de ampliá-lo”.

Em conclusão, vê-se que o foro especial por prerrogativa de função é um instituto complexo que comporta tanto críticas quanto elogios. Concretamente, entretanto, constata-se que seus resultados tem sido sobretudo deletérios para o regime republicano, impedindo que as autoridades acusadas de delitos sejam responsabilizadas pelos seus atos de forma eficaz e a impunidade seja combatida. Cabe ao Congresso Nacional juntamente com o Supremo Tribunal Federal equacionar o problema, mediante a apresentação de propostas legislativas que reduzam o número de autoridades beneficiárias do foro especial e agilizem a tramitação dos processos nas altas instâncias judiciárias nacionais.

Foro Privilegiado é legislar em FAVOR PRÓPRIO.
















Fontes: OAB, STF, Câmara dos Deputados, Portal da Justiça



BIO

Thiago Muniz é colunista dos blog "O Contemporâneo", do site Panorama Tricolor, do blog Eliane de Lacerda e do site Jornal Correio Eletrônico. Apaixonado por literatura e amante de Biografias. Caso queiram entrar em contato com ele, basta mandarem um e-mail para: thwrestler@gmail.com. Siga o perfil no Twitter em @thwrestler.



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