segunda-feira, 20 de julho de 2015

Papa Francisco: o estadista sustentável (Por Thiago Muniz)

O reformador Bergoglio recupera a palavra de Cristo e o valor da Caridade, que se tornaram letra morta em largos momentos da história da Igreja.

Deve ser bem difícil administrar a mais antiga organização política em atividade do mundo, a mesma que patrocinou e apoiou todos os golpes sanguinários de direita no continente latino-americano e ao mesmo tempo, organizou e formou boa parte da resistência de esquerda a esses mesmos golpistas. É de desejar boa sorte, porque trata-se de uma entidade absolutamente assustadora e obscura.

Papa Francisco é hoje em dia o único, grande estadista de dimensões mundiais, reformador determinado, corajoso, inspirado. 

Óbvio nele o propósito de reparar os males provocados à Igreja Católica pelos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, dignos da politicagem e da devassidão das cortes papais da Renascença e responsáveis por uma conspícua evasão de fiéis. 

A par disso, entretanto, é ele quem se ergue contra o que define como a “ditadura sutil” imposta à humanidade pelo poder do dinheiro, para aprofundar vertiginosamente o abismo entre ricos e pobres.

Ao escolher seu nome no momento de tomar assento na cadeira de Pedro, o jesuíta Bergoglio deu um claro indício dos rumos desejados para sua ação, como se a cultura própria da ordem de Inácio de Loyola se aliasse ao despojamento cristão do Pobrezinho de Assis, para assinalar o retorno à palavra de Cristo, pregador do amor ao próximo como fonte da igualdade, ideia revolucionária illo tempore até o nosso presente.

Como escreveu Ronald A. Knox em seu Enthusiasm, a Chapter in the History of Religion, a crença de que “o primeiro período da Igreja foi uma idade do ouro” revelou-se bastante questionável. De fato a pretensão de manter intacta a lição de Cristo foi frequentemente geradora de desvios e equívocos, cismas e heresias. De certa forma, papa Francisco, como Paulo de Tarso, emite sua Epístola aos Coríntios (nada a ver com os torcedores corintianos), sobretudo na passagem que diz respeito à Caridade, a mais importante entre as virtudes teologais.

Corinto no século I era cidade do mais desbragado meretrício, mesmo entre os católicos a licenciosidade dominava, e o ex-soldado fulgurado por um raio divino a caminho de Damasco cuidava de colocar no bom caminho a sua grei. As questões que a Epístola de Paulo levanta são distantes das atuais, mas a Caridade é invocada com energia, e a virtude se coaduna à perfeição com a pregação de Cristo.

Paulo é figura controversa, como verdadeiro fundador de uma Igreja que ao longo dos séculos se afastou das ideias de quem a apoiou sobre uma pedra chamada Pedro, acabou por dividir com o Imperador do Sagrado Romano Império o poder do mundo, e assumiu até as feições de monarquia mundana depois da doação do Castelo de Sutri pelo rei longobardo Astolfo, no VIII século. Não foi por acaso que o papa coroou em Roma Carlos Magno imperador, e alguns dos seus sucessores, e humilhou outro, Henrique III.

O papa tornou-se dono de toda a Itália central, impediu a unificação do país e a criação de um Estado Nacional até a segunda metade do século XIX, e, sempre que se sentiu ameaçado, não hesitou em pedir socorro aos reis europeus e seus exércitos, de sorte a garantir a divisão da península. A palavra de Cristo foi letra morta, em benefício do mais duradouro poder temporal por direito divino em dois milênios.

Ao cuidar de sua grei, papa Francisco tem de redimir a Igreja dos seus pecados, e neste sentido há de se mover sua modernização, para o entendimento das dinâmicas desencadeadas pela melhor compreensão da natureza e da evolução humana ao sabor do conhecimento. E ainda, e sempre, pela tolerância, mais ainda, pela misericórdia, na medição dos limites do ser humano, de resto determinados pelo Criador, segundo quem acredita, e tão pouco respeitados por quem até ontem mandou urbi et orbi.

Com Francisco, ocorre o retorno à ideia da igualdade, contra o neoliberalismo em pleno vigor e contra a miséria que resulta dele, em proveito da felicidade terrena de banqueiros, especuladores e rentistas, diante da passividade, ou mesmo da resignação de quantos haveriam de se opor. A viagem papal pela América Latina confirma e fortalece a postura do estadista, bem como a contrariedade daqueles que, além dos expoentes da Cúria Vaticana finalmente tirados de cena, a linha papal constrange e ameaça.

Um colunista nativo clama contra “a monstruosidade herética” com que Evo Morales, “protoditador da Bolívia”, presenteou “o argentino Bergoglio”: um Cristo “que suja as mãos com o sangue de 150 milhões de crucificados”. Mal sabe o colunista que em algum canto do Vaticano está guardado outro emblema vermelho.

Regresso súbito ao Brasil em 1961. Jânio renuncia e seu vice, João Goulart, é tido em odor de comunismo pelos senhores da casa-grande e por seu porta-voz, a mídia nativa, sempre alerta. Daí, fortes resistências, manu militari, à sua posse no posto abandonado. Ao cabo, desenha-se o compromisso e Jango assume à sombra do Parlamentarismo, pelo qual hoje se bate o senador José Serra. Um ano depois, Jango, juntamente com esposa e filhos, Denize e João Vicente, visita João XXIII, de muitos pontos de vista política e espiritualmente aparentado com Francisco.

Uma caixa de madeira forrada de veludo e ricamente entalhada é o presente de Goulart ao papa Roncalli. João Vicente, incansável na evocação da figura paterna, ouviu de Darcy Ribeiro uma história, publicamente divulgada em um livro (Invenção e Descaminho, Editora Avenir, 1978). Autor da caixa, o marceneiro Manoel, o qual, tempo depois da visita de Jango ao Vaticano, procurou Darcy, então chefe do Gabinete Civil da Presidência, e confessou, não sem candura: “No fundo da caixa, entalhei a foice e o martelo”. Comentaria Darcy, ao recordar: “Naquele palácio, o único comunista era mesmo o seo Manoel”.

A encíclica ambientalista do papa Francisco era aguardada com muita expectativa por amigos e inimigos. A apresentação oficial, na quinta-feira 18, na sala do Sínodo no Vaticano, foi prejudicada pelo vazamento do conteúdo ao semanário italiano l’Espresso. No blog mantido pelo vaticanista da revista, uma versão aparentemente integral do documento foi publicada três dias antes. Com frontispício papal original, um texto de 191 páginas dividido em seis capítulos e 246 parágrafos, a encíclica intitulada Laudato si’, sobre o cuidado necessário com a casa comum, acabou divulgada para o mundo inteiro dessa maneira surpreendente e um tanto rocambolesca. Iniciativa simplesmente “incorreta”, como denunciou o serviço de imprensa da Cúria, ou maliciosa manobra inspirada pelos inimigos de Francisco?

Inevitavelmente, os órgãos oficiais do Vaticano manifestaram grande irritação e negaram se tratar do texto final, mas, poucas horas depois, ambientes próximos do papa deixaram vazar algumas palavras do pontífice imbuídas do objetivo de aliviar o clima. Com a costumeira ironia, Francisco teria comentado: “O rascunho é quase idêntico ao original... mas tanto faz: vocês sabem que eu gosto de bagunça”. De todo modo, a seráfica reação do papa não evitou que o incauto jornalista italiano, Sandro Magister, tivesse seu nome retirado sine die da lista de vaticanistas “com credibilidade”.

Conforme sublinhado durante a apresentação oficial, nunca houve uma espera tão intensa e prolongada por um documento particular da Igreja. Justificável. A Laudato si’ é uma obra que nasce para deixar uma marca fortíssima não só em âmbito religioso. Tamanha é a sua profundidade espiritual, amplitude cultural e contundência política que o debate sobre os rumos do planeta neste século não poderá prescindir dela, seja para apoiá-la, seja para combatê-la.

A encíclica (do latim encyclios, que significa circular, que abraça tudo) começa com a reprodução de um trecho de um texto de São Francisco de Assis, considerado o patrono dos ambientalistas: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”. A partir dessas palavras iniciais do Cântico das Criaturas, a primeira obra literária da língua italiana, o santo de Assis celebrava poética e espiritualmente a maravilha da Criação. Na sequência o papa lembra que o gênero humano compartilha uma casa comum, que, como mãe amorosa e bela, “nos acolhe em seus braços”.

A dimensão contemplativa e espiritual, própria dessa dedicatória, deixa logo espaço à inspiração pastoral dirigida ao bem e à justiça, com clara influência da Teologia da Libertação. Em nova referência a São Francisco, o papa lembra: “Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior”. Na linha do compromisso integral, a encíclica não se dirige só aos cristãos, pois todos moramos na “nossa casa comum”.

Francisco, o papa, recorda que sua peculiar sensibilidade ao meio ambiente não é uma novidade para a Igreja, mas é filha da atenção dedicada por vários antecessores à questão. Digna de menção é a homenagem ao patriarca ortodoxo de Constantinopla, Bartolomeu, a quem é implicitamente reconhecido um papel de precursor, por ter afirmado em 1997 que “um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus”.

Surpreende positivamente o estilo da encíclica, a primeira completamente inspirada e escrita pessoalmente por Francisco. Linguagem simples e fresca, que permite fácil compreensão de questões complexas e enfrenta com terminologias laicas os principais problemas contemporâneos.

O primeiro dos seis capítulos apresenta uma análise da atual crise ambiental, com a finalidade de assumir os melhores frutos da pesquisa científica e oferecer uma base concreta para o percurso ético e espiritual posteriormente traçado. A argumentação fundamental é de que a civilização moderna, ao distorcer a correta interpretação das Escrituras, tem exaltado a missão humana de dominação da natureza e esquecido a dimensão da custódia. Portanto, a primeira tarefa à qual Francisco se propõe é a de desmitificar essa visão, acabar com a confiança irracional nas capacidades humanas desmedidas e com a ilusão do progresso infinito, desmentido, aliás, pelas mais recentes descobertas da ciência.

Segundo o papa, falar de poluição e mudança climática, ou de perda da biodiversidade, significa não só focalizar os abusos cometidos contra a natureza, mas refletir sobre a cultura do descarte ou evidenciar que as primeiras vítimas desses fenômenos são os pobres. Ao mesmo tempo, escreve, o “acesso a água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas”. Nítida, por consequência, a oposição a todas as formas de privatização da água.

Uma breve síntese do documento permite ressaltar que a ideia de uma ecologia integral é o recado central de Francisco. Esse conceito é repetido inúmeras vezes no texto e dá nome ao quarto capítulo. “É fundamental”, anota Bergoglio, “procurar soluções integrais que levem em conta as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais.

Não existem duas crises separadas, a ambiental e a social, mas uma só e complexa crise socioambiental.” Degradação do meio ambiente e pobreza são os dois lados da mesma moeda.

A ecologia integral inclui os variados componentes da vida humana e considera a interconexão entre todos os fenômenos (“tudo é intimamente relacionado”). O passo para enfrentar os desafios cruciais da contemporaneidade é breve: “A política não deve se submeter à economia, e esta não deve se submeter aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje é imperioso que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente a serviço da vida humana. A salvação dos bancos a todo custo, fazendo a população pagar o preço, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois de longa, custosa e aparente cura”.

O texto também enfrenta com espírito radicalmente crítico questões como a crise do antropocentrismo moderno, a cultura do relativismo prático ou a necessidade de se defender o trabalho e de uma parte da humanidade aceitar o decrescimento, só para citar as questões mais delicadas.

Foi o suficiente, porém, para desencadear imediatas reações de hostilidade contra o papa. Desde a divulgação oficial da encíclica, cardeais conservadores norte-americanos espumam de raiva, enquanto mais abertamente o senador republicano de Oklahoma, James Inhofe, conhecido negacionista da existência e dos efeitos do aquecimento global, convida o papa a “se ocupar dos seus problemas”. Jeb Bush, o terceiro integrante da família a aspirar à Presidência da República nos Estados Unidos (o pai e o irmão conseguiram), comentou lapidarmente: “Não vou receber ordens do pontífice”.

Graças à involuntária ou cúmplice colaboração de quem adiantou a divulgação do texto, os inimigos da visão humanista de Francisco puderam se manifestar até antes da publicação da encíclica. Foram só as primeiras escaramuças da batalha. Esperam-se ataques furibundos no futuro próximo. Pela estirpe dos críticos, o papa acertou em cheio.


Ser discípulo de Cristo é renunciar a tudo o que se tem

Quando se resolve uma desavença, abre-se mão de alguns valores. Mas há valores que são irrenunciáveis.

Se alguém quer vir após mim, negue- se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me”. (Lc 9,23).

Quando uma pessoa vai conversar com outra para resolver alguma desavença, ela sempre leva consigo alguns valores, valores renunciáveis que deve haver de ambas as partes para que o acordo seja feito, e também aqueles valores dos quais não abre mão: os valores irrenunciáveis.

Acredito que não é segredo para ninguém que um valor grandioso que carrego comigo é a fé católica que professo. E não sou católico que desconhece o significado da palavra “católico”, que não conhece Jesus Cristo nem a Sua Igreja e tampouco o evangelho. Sou católico por convicção, ou, como bem dizia o meu ex-pároco, frei Inocêncio Pacchioni: “Não sou tão leigo assim”. Não sou perfeito; só Deus é perfeito. Carrego comigo, como todas as pessoas falhas, pecados que precisam constantemente ser corrigidos ao longo da vida. E tenho essa convicção porque fui chamado “pessoalmente” pelo Senhor. Desde que me aproximei d’Ele, inicialmente por caminhos tortuosos, mas que serviram para fazer de mim quem hoje sou, Ele não me abandonou e a minha convicção é tão grande que considero preferível ser ateu a professar uma fé que não seja a fé católica.

No trecho de Lucas acima citado, Jesus coloca duas condições para segui-lo: “negar a si mesmo” e “carregar a sua cruz”. A primeira tem relação com a segunda. O que seria negar a si mesmo senão deixar de lado os próprios instintos puramente carnais? E que cruz seria essa senão a de ter que negar a si mesmo, as próprias vontades e desejos? De fato, “minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou” (Jo 7,16). Por isso o verdadeiro discípulo de Cristo “não anuncia a si mesmo” (v.18), as suas convicções, os seus desejos e pensamentos, mas Aquele que o chamou e escolheu. Acontece, porém, que o sistema inteiro sob o qual vivemos é muito, muito afastado de Cristo. Pode não haver respostas, mas nós temos que fazer pelo menos as perguntas. A nossa inteligência, como católicos, não pode deixar de notar a violência satânica e cheia de segredos terríveis que é perpetrada pelo nosso governo!

A fé católica nos convida à pobreza, à castidade e à obediência. E o que eu descobri é que estes três estados de vida são incrivelmente empolgantes e desafiadores! Eles nos dão um tipo de liberdade e de “consciência de ser” que é completamente inexistente no meio da nossa cultura entorpecente. O fato é que quanto mais nos aproximamos de Cristo, e consequentemente da Igreja Católica, que é o Seu Corpo, mais nos assemelhamos a Ele no agir, no pensar e no falar, e, por isso, recebemos em nosso corpo as marcas (chagas) do corpo de Jesus (cf. Gl 6,17). O que são estas feridas senão a oposição do mundo? De fato, se alguém se diz cristão e não possui em si as chagas do crucificado, é mentiroso. Se alguém se diz católico e não sofre quando vê a Igreja de Cristo sofrer ataques de todas as formas e não sente em si mesmo esta dor, é mentiroso; pois se a Igreja é o Corpo do Senhor e nós somos membros deste Corpo, e, conforme o apóstolo Paulo, “se um membro sofre, todo o corpo sofre com ele” (cf. 1Cor 12,26), como posso eu, membro do corpo, não sentir as dores do corpo ainda que a ferida não esteja diretamente em mim?

É hora de os filhos de Deus se revelarem ao mundo e é pelos frutos que os conhecemos. A fé acompanhada de obras mostra quem é verdadeiramente discípulo de Cristo! E Cristo não aceita titubeios: ou se “está com Ele ou não está” (cf. Mt 12,30). Não há meio termo: “Conheço as tuas obras: não és nem frio nem quente. Antes fosses frio ou quente! Mas, como és morno, nem frio nem quente, eu te vomitarei” (Ap 3,15-16). É por isso que repito: se alguém não crê na mensagem de Jesus que nos é transmitida por meio da Sua Igreja Católica (cf. Lc 10,16), se alguém não está disposto a se tornar pequeno como uma criança (cf. Mt 18,3), a renunciar a tudo o que tem (cf. Lc 14,33), a negar a si mesmo, a carregar a sua cruz (cf. Lc 9,23) sem “olhar para trás” (cf. Lc 9,62), esse alguém não é digno do Senhor, não é digno do Seu Reino, não pertence à Sua Igreja e não possui a Deus por Pai. É neste sentido que aquilo que professamos com a boca deve corresponder ao nosso comportamento e também ao nosso pensamento. Examinemos, pois, as nossas verdadeiras intenções, os nossos pensamentos, e vejamos se correspondem ao nosso proceder.



BIO

Thiago Muniz tem 33 anos, colunista dos blog "O Contemporâneo", do site Panorama Tricolor e do blog Eliane de Lacerda. Apaixonado por literatura e amante de Biografias. Caso queiram entrar em contato com ele, basta mandarem um e-mail para:thwrestler@gmail.com. Siga o perfil no Twitter em @thwrestler.

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